06 de Agosto de 1998
A mamã agora deve ter-se distraído porque não fez força nenhuma para me agarrar a mão e eu tirei-a devagarinho e já posso chegar ao pingo de cera branca que está entre as duas tábuas; mais à frente há outros bocadinhos mesmo aos pés das pessoas e um maior que eu gostava de apanhar, mas está longe, está mesmo ao pé do degrau do altar em cima do tapete vermelho comprido que vai até à porta; eu nunca tinha visto um tapete assim tão grande e as pessoas não ficam em cima dele, se calhar não se pode, vai mesmo até à porta grande da rua que está aberta e deve ser para entrar o ar porque está muito calor; a dona Maria, que é a mãe da dona Isaura, está mesmo no banco à nossa frente e se eu contar até doze sei que ela vai olhar para trás para a mamã e depois pegar no lenço que tem dentro da saia e esfregar a cara para cair o suor e depois continuar a falar baixinho que eu bem ouço mas não percebo nada, eu queria ficar ao lado da avó mas a mamã disse-me baixinho mas com força quando entrámos e a abanar-me o braço
- Ficas aqui ó meu lado e portas-te bem, oubiste?
e agora a mamã está sempre a abraçar a avó com o outro braço e olha sempre lá para a frente onde estão os jarros grandes quase ao pé do tecto com flores vermelhas rodeados de velas que não tremem, a avó não chora porque não se ouve nada e está quietinha, não é como dona Isaura que eu vejo escorrer sempre a mesma lágrima juntinho ao nariz ao pé do sinal grande; o menino que é um pouquinho maior que eu tocou o sino quando o senhor padre ergueu os braços ao alto e o som fininho que me faz lembrar um arame ainda está a tremer nos meus ouvidos; a mamã nem viu que tirei a minha mão de dentro da mão dela e se quiser posso ir até lá à frente pegar no bocado grande de cera que caiu em cima do tapete vermelho como as flores que estão à volta do altar e na roda grande de flores que nem sei como juntaram assim as flores todas e está em cima do caixão onde o avô está deitado muito quietinho porque está morto; a dona Isaura não diz caixão diz urna, eu ouvi-a dizer quando estava no banco ao pé do Fiel a fazer de conta que era o avô e ficava muito tempo sem pestanejar a olhar para o céu e
as andorinhas andavam à volta dos telhados
- Arranjou-se uma bonita urna e parece qu'é mesmo de pinho!
Excerto do romance Como Sombras No Muro, da autoria de Gilberto Pinto, editado pela Editorial Escritor Lda em 2003.
Gilberto António Pinto nasceu em Carrazeda de Ansiães, em 1964.
Actualmente reside no Porto, onde é professor no Instituto Superior de Engenharia.
A sua actividade desde há muito que se divide entre a docência, a investigação científica e a literatura.
Como Sombras no Muro é o seu primeiro romance.
Fotografia: Lameiros perto de Marzagão.
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